por Caio Gallego, Gerente de Inteligência NBS e Marcos Siqueira-Neto, Especialista ALM (Agricultural Land Management)
Plantar e criar animais estão entre as atividades mais antigas da humanidade. Foi a agricultura que permitiu o surgimento das cidades, a diversificação produtiva e o comércio. Alterando as paisagens e utilizando os recursos naturais, a agricultura é o maior empreendimento humano na Terra.
Para alimentar e fornecer fibras e bioenergia para 10 bilhões de pessoas estimadas para ocuparem o planeta em 2050, e sem aumentar os impactos aos ecossistemas naturais, o crescimento da produção agrícola deverá ser viabilizado não somente pelo aumento da produtividade, mas também por meio da recuperação das áreas degradadas.
Nesse 2º posicionamento técnico da Biofílica, pretendemos tratar da importância do agronegócio brasileiro para o desenvolvimento socioeconômico e seu papel decisivo como uma potencial Solução Baseada na Natureza. Destacamos ainda a necessidade de enfrentar os desafios da segurança alimentar e energética frente as mudanças climáticas, garantindo saúde e o bem-estar humano, ao mesmo tempo em que pode auxiliar na redução da degradação ambiental.
O crescimento da agropecuária brasileira e seus impactos ambientais
O sucesso da agropecuária brasileira se deu devido a presença de áreas com condições ambientais favoráveis, abundância hídrica e um relevo que permite a produção mecanizada, isso aliado as inovações tecnológicas e práticas de manejo tropicalizadas, resultaram tanto no aumento da produtividade, como na expansão das fronteiras de produção, especialmente, na Amazônia e no Cerrado.
O agronegócio familiar corresponde a 77% das propriedades rurais, com importância para o abastecimento do mercado interno e o controle de preços dos alimentos. Já o agronegócio empresarial responde por cerca de 50% da pauta exportadora, com destaque para os complexos soja e sucroalcooleiro, cereais, carnes e produtos florestais.
A escalada produtiva da agropecuária brasileira teve início nos anos 1960, período conhecido como a “Revolução Verde”. Sua modernização foi baseada em pesquisas científicas e inovações tecnológicas, com destaque para a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Por outro lado, esse crescimento trouxe mudanças profundas no modelo produtivo e na paisagem rural, e consequências para os produtores rurais, como:
- Necessidade de adaptação ao novo modelo produtivo;
- Necessidade de crédito para aquisição de equipamentos e insumos;
- Necessidade de assistência técnica para a transição tecnológica;
- Dependência de tecnologia e insumos externos às propriedades.
Que refletiram também no ordenamento territorial brasileiro, como:
- Desemprego no campo;
- Êxodo rural;
- Aumento de latifúndios;
- Movimentos migratórios;
- Ocupação territorial e a necessidade de infraestrutura.
Enquanto para o meio ambiente, os maiores impactos causados pelo crescimento do setor agropecuário estão relacionados a dois fatores:
- a mudança do uso da terra, sendo este um dos principais vetores responsáveis pelo desmatamento, e;
- após o desmatamento, a degradação das áreas cultivadas e pastagens, causada por práticas de manejo inadequadas ou a ausência delas.
Esses fatores, somados à queima de resíduos vegetais, a rizicultura inundada, o uso excessivo de fertilizantes (especialmente nitrogenados) e agroquímicos, além da fermentação entérica e a decomposição dos dejetos dos animais são responsáveis pela degradação ambiental e o aumentos das emissões de Gases do Efeito Estufa (GEE), agravando as mudanças climáticas, cujas consequências retroalimentam os impactos sobre a produção, tais como, a alteração do zoneamento territorial e a aptidão agrícola, aumento do risco de desertificação e os eventos climáticos extremos.
Ações regulatórias de desenvolvimento sustentável na agropecuária brasileira
Historicamente, as políticas agrícolas brasileiras incentivaram a produção de commodities e o desmatamento, focadas exclusivamente no aumento da produção. Contudo, mais recentemente, as pressões internacionais, os mercados e a sociedade civil vêm demandando que diversos setores, incluindo o agronegócio, estabeleçam metas claras e implementem ações efetivas para a redução da degradação ambiental, a mitigação das mudanças climáticas, a perda de biodiversidade, a erradicação do trabalho análogo à escravidão e a promoção de relações trabalhistas justas.
Nesse sentido, além da mudança na legislação para proteção do meio ambiente, iniciativas voluntárias buscam conciliar a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico para incentivar a produção agrícola responsável, como exemplo, a ‘Moratória da Soja’ . Essa iniciativa marca o compromisso das empresas em não comercializarem soja proveniente de áreas desmatadas da Amazônia Legal. E, em 2020, a ‘Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura’ reuniu representantes do agronegócio e outras entidades, e apresentaram seis medidas para reduzir, de forma rápida, o desmatamento ilegal na Amazônia, sendo estas:
- Intensificar a fiscalização;
- Suspender o CAR de áreas em florestas públicas;
- Destinar áreas à proteção e uso sustentável;
- Conceder financiamentos sob critérios socioambientais;
- Apresentar transparência nos dados das autorizações de supressão de vegetação;
- Suspender os processos de regularização fundiária de imóveis com desmatamento constatado após julho de 2008.
Recentemente, a União Europeia publicou o regulamento 2023/1115 – EU Deforestation-Free Regulation, impondo requisitos de due diligence às importações de commodities agrícolas e produtos que podem estar associados ao desmatamento. De fato, essa regulamentação funcionou como um catalisador para acelerar as iniciativas voltadas a rastreabilidade das cadeias de valor, por exemplo, a iniciativa ‘Soja na Linha’ que apresenta critérios para a rastreabilidade da soja. Já na pecuária, a iniciativa mais recente foi o ‘Protocolo de Monitoramento Voluntário de Fornecedores de Gado no Cerrado’ , apresentando os critérios de monitoramento socioambiental para a compra de produtos de origem bovina.
Nesse contexto, torna-se evidente que a busca pelo desenvolvimento sustentável no agronegócio brasileiro está além da produção responsável, respeito a legislação fundiária, trabalhista e ambiental. É também influenciado por marcos regulatórios, acordos e diretrizes de mercados internacionais, os quais têm consequências reputacionais, incluindo sansões e embargos. Esses fatores afetam tanto a demanda quanto os preços dos produtos agropecuários brasileiros, impactando diretamente o faturamento dos produtores rurais.
A agropecuária como uma Solução Baseada na Natureza
Conforme definido pela Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), Soluções Baseadas na Natureza (SBN) são ações para conservar, restaurar ou utilizar de forma sustentável ecossistemas naturais ou modificados, que abordam os desafios sociais, econômicos e ambientais, ao mesmo tempo que proporciona bem-estar humano, qualidade nos serviços ecossistêmicos, resiliência climática e benefícios para a biodiversidade.
Partindo dessa definição, as SBN ultrapassam as questões ambientais, e apontam a necessidade de promover ações para dar suporte às populações rurais, especialmente, pequenos produtores, mulheres e populações tradicionais em situação de vulnerabilidade; através da oferta de crédito e serviços de financiamento, acesso a mercados, titulação de terras, saúde, serviços sociais, educação, treinamento, conhecimentos e tecnologias produtivas ambientalmente adequadas e acessíveis.
Para que a agropecuária brasileira possa ser encarada como uma SBN, é necessário fomentar a mudança na abordagem do atual modelo produtivo. Essa transformação deve ocorrer tanto nas propriedades rurais quanto nas atividades produtivas. Isso só será possível através do envolvimento do poder público, organizações internacionais, universidades, setor privado e da sociedade civil, incluindo especialmente os produtores rurais e ambientalistas.
A mudança no modelo produtivo acontece inicialmente na gestão administrativa e financeira da propriedade rural e se estende às para as atividades produtivas. A boas práticas de manejo com viés de SBN operam em sinergia com os processos naturais, potencializando os serviços ecossistêmicos. Dessa forma, além dos benefícios para a produção, melhoria da saúde do solo e do ambiente produtivo, essas práticas promovem eficazmente a recuperação das áreas degradadas, improdutivas ou de baixa produtividade. Alguns exemplos de boas práticas de manejo são o plantio direto, cultivo de cobertura, rotação e diversificação de culturas, manejo rotacionado de pastagens, agroflorestas, entre outras.
A adoção dessas práticas garante ainda um ambiente agrícola mais resiliente, tanto aos riscos financeiros quanto ambientais, ajudando os produtores na adaptação da atividade produtiva às condições climáticas cada vez mais variadas, bem como, contribuírem diretamente para a mitigação das mudanças climáticas, através do sequestro de carbono no solo e na vegetação, e reduzindo as emissões dos GEE para a atmosfera.
Nesse sentido, as ações necessárias para a transição dos atuais modelos de produtivos para o desenvolvimento sustentável da agropecuária brasileira devem acontecer por meio da adoção de boas práticas de manejo com viés de SBN que proporcionem i) benefícios socioeconômicos, como o aumento da produtividade e da rentabilidade agrícola, com melhoria das condições de vida das comunidades rurais e novas fontes de renda; ii) adaptação e resiliência das atividades produtivas aos riscos climáticos, garantido segurança alimentar e energética e; iii) a redução e a remoção de emissões do GEE.
Desafios e Perspectivas
Se por um lado, o desenvolvimento sustentável da agropecuária é uma potencial SNB e pode alavancar a agenda global de desenvolvimento sustentável, por outro, dada a magnitude do país, a agropecuária brasileira é marcada pela heterogeneidade de modelos produtivos que diferem em termos de escala, sistemas de produção, uso de fatores de produção e insumos, e apresenta diversos níveis técnicos e tecnológicos.
Na maioria dos casos, essa discrepância está relacionada a diversidade regional e o conhecimento dos produtores rurais, bem como, suas diferentes capacidades para realizar investimentos na propriedade e em suas atividades produtivas. De maneira geral, as barreiras que impedem a transição do atual modelo de produção para uma abordagem sustentável na agropecuária estão relacionadas com:
- a resistência dos produtores em adotar novos modelos de gestão da propriedade e sua atividade produtiva (barreira cultural);
- a falta de conhecimento dos impactos da exaustão dos recursos naturais, perda da qualidade dos serviços ecossistêmicos e dos riscos climáticos sobre a produção (barreira institucional);
- a escassez de capacidade e/ou estratégia financeira para realizar melhorias na atividade produtiva (barreira financeira); e,
- a falta de assistência técnica e mão-de-obra qualificada para implementação de uma produção sustentável (barreira tecnológica).
Encarar esses desafios reforça a sinergia da agropecuária com as SBNs, pois deve ser feito através de um meticuloso engajamento dos produtores rurais com o desenvolvimento sustentável da produção. E assim, levar aos produtores rurais conhecimento, treinamentos e assistência técnica para a adoção de melhores práticas de gestão da propriedade e da atividade produtiva, demostrando seus benefícios em produtividade e rentabilidade.
É sabido que para realizar as mudanças nas práticas de manejo, normalmente, exige investimentos em equipamentos, infraestrutura, insumos e mão-de-obra. Dessa forma, os produtores rurais necessitam de acesso a linhas de créditos com critérios de sustentabilidade que podem ser públicos (RenovAgro e Fundo clima), privados (green bonds) ou mistos (blended financial), além de outros incentivos financeiros como pagamentos por serviços ambientais e o mercado de carbono.
Atualmente, além dos benefícios potenciais à sociedade e ao meio ambiente, a adoção de boas práticas de manejo com viés de SBN possibilitam ainda a implementação de projetos para a geração de créditos de carbono, que podem ser certificados no Mercado Voluntário de Carbono (VCM). A entrada do setor agropecuário no mercado de carbono representa mais uma mudança de paradigma na história, direcionando incentivos financeiros reais para o desenvolvimento do setor no caminho de uma produção sustentável.
Deste modo, a agropecuária brasileira pode assumir protagonismo para alavancar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pois garante segurança alimentar e melhoria da nutrição (ODS2), torna-se o maior fornecedor de biocombustíveis, influenciando a matriz energética global (ODS7), impulsiona a cadeia agroindustrial e o consumo responsável (ODS 12), colabora com o empoderamento de pequenos agricultores e mulheres (ODS5) e contribui para a erradicação da pobreza (ODS1). Além disso, a intensificação sustentável da produção agropecuária tem efeito direto na conservação florestal, reduzindo a pressão sobre o desmatamento e mitigando às mudanças climáticas (ODS13).
A agropecuária brasileira tem muito a ganhar ao alinhar-se aos princípios das Soluções Baseadas na Natureza. No entanto, para isso acontecer, é essencial a criação, incentivo e divulgação de políticas de exportação, créditos e incentivos socioambientais, bem como mercados para créditos de carbono, produtos de baixo carbono/net zero e fair trade. Simultaneamente, o agronegócio, tanto familiar quanto empresarial, precisa se adaptar, transformar e comprometer-se com a melhoria contínua na gestão das propriedades rurais e suas atividades produtivas. Essas ações devem visar o aumento da produtividade, a diversificação produtiva e benefícios financeiros, além de avançar a agenda de desenvolvimento sustentável, reduzir o esgotamento ambiental e aumentar a resiliência ao risco climático.
Para saber mais:
Denny, D.M.T., Cerri, C.E.P., Cherubin, M.R., & Burnquist, H.L. (2023).
Carbon Farming: Nature-Based Solutions in Brazil.